terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Sobre processos e amplificadores


Meu sonho, quando era mais guri, era comprar um amplificador de guitarras valvulado da Marshall. Eu fazia parte de uma banda de rock na época, e achava que com um bom amplificador ninguém me seguraria. Nunca consegui comprar o Marshall. Quando queria, não tinha dinheiro, quando tinha dinheiro, as prioridades eram outras. Coisas normais da vida normal. Mas mesmo sem nunca ter comprado o famoso amplificador, eu consegui uma chance de ouro de aproveita-lo ao máximo.

Eu e meus amigos de banda juntamos uma grana e resolvemos gravar nossas músicas em um estúdio local. Naturalmente queríamos mostrar para o mundo o poder de nossas músicas de 3 minutos, 3 acordes e 3 temas (cerveja, garotas e revolta). O estúdio era de um amigo, conterrâneo e meu veterano no curso de engenharia elétrica. E adivinhe, ele tinha um Marshall valvulado.

Chegamos ao estúdio bem ensaiados e cheios de vontade, montamos os equipamentos e começamos a gravação. Eu não via a hora de começar a gravar a guitarra. Ficava olhando o Marshall, quietinho na sala de gravação, esperando a vez dele. Ele me olhava de volta, meio que me desafiando, como se eu não fosse capaz de encara-lo. Ele tinha razão.

Quando chegou a minha vez, respirei fundo, pluguei a guitarra, que estava com cordas novas, bem afinadinhas, e dei o primeiro acorde. Um desastre. Que som horrível, rachado, sem brilho, sem sustentação. Realmente muito ruim. Antes que eu conseguisse pensar em me recuperar da decepção, o dono do estúdio entrou na sala de gravação e disse “me deixa ver tua guitarra.” Ele pegou minha Tonante, olhou para ela, olhou para mim com muita dó e me lembrou de um conceito muito básico, bastante explorado no curso no qual ele era meu veterano, se o sinal de entrada é ruim, basicamente ruído, o amplificador não vai arrumar o sinal, vai apenas amplifica-lo. Em outras palavras, se a guitarra é uma bosta (como é o caso da Tonante), um Marshall valvulado não vai fazer milagre.

No fim não teve jeito de gravar com aquele negócio. Por sorte o dono do estúdio é um baita guitarrista e emprestou uma das suas para que a gravação não naufragasse. Registramos nossas músicas orgulhosos, ficamos razoavelmente conhecidos, ao longo dos anos seguintes gravamos dois CDs e, quando batemos a casa dos 30 anos, fomos abandonando aos poucos o ofício de roqueiros revoltados contra o sistema. Encaixamo-nos no padrão esperado e tocamos a vida.

Os anos passaram, os tempos de banda ficaram para trás e eu me peguei esses dias pensando naquele Marshall desgraçado. Estava com um dilema para resolver no trabalho e a lembrança daquele amplificador e da minha guitarra podrona caiu como uma luva. A discussão era sobre por onde iniciar o redesenho de um processo de negócio razoavelmente grande da empresa. Eu era responsável por conduzir a iniciativa, o grupo era de umas 10 pessoas de diversas áreas, e o calor da discussão aumentava na medida em que cada um pensava somente no seu feudo, e ninguém estava preocupado em resolver o todo.

Com o mapa da situação atual do processo colado na parede, dividido em 4 etapas diferentes, falei “pessoal, caiu a ficha, já sei por onde começar”. Todos olharam e ficaram esperando eu lançar a ideia, provavelmente para lincha-la, continuei “vamos começar pela guitarra. Temos que ter uma Fender Stratocaster americana. Não adianta querer Marshalls valvulados enquanto tivermos tocando uma Tonante”. Foi divertida a reação coletiva. Todos ficaram me olhando. Um até puxou o telefone, e depois desistiu. Acho que pensou em ligar para a segurança ou para o ambulatório (porque empresas não têm sanatório – muitas deveriam). Curti a perplexidade geral por uns30 segundos e contei a história do Marshall. Apelidamos a parte 1 do processo de Tonante, a 2 de cabo, a 3 de Marshall e a última de fita de gravação. Ficou claro para todos que tínhamos que, antes de mais nada, encontrar uma guitarra adequada para conseguirmos fazer uma boa música empresarial. E assim foi feito.


Se você teve paciência de ler até aqui deve estar pensando, “caramba, toda essa história para o cara chegar à conclusão de que o ideal é sempre começar pelo começo?”. Verdade, é que nas situações mais diversas da vida, como estúdios de gravação musical ou grandes corporações a gente tem essa mania de complicar o obvio. Grande amplificador aquele Marshall.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

João


E tem o João, que era representante de uma empresa que representava materiais e equipamentos elétricos e de automação de outra empresa bem maior, e francesa. A francesa não tinha unidade aqui na região, e escolheram a empresa do João para representa-los. Para ser bem honesto, eu não gostava muito do João. Eu era cliente dele, mas achava ele muito bola murcha, se é que ainda existe essa expressão. Devagar mesmo, pouca energia. E um pouco reativo também, do tipo que não assume a responsa de muita coisa e faz aquela cara de “o que é que eu posso fazer?” No final das contas, eu estava errado. Era preconceito porque ele não era igual a mim. Onde já se viu não ser igual a mim?

Um dia eu estava de férias, como eventualmente a gente fica, em uma cidade do litoral chamada Itapoá. Não tinha nada lá, à exceção da pousada em que estávamos, casas, terrenos vazios, alguns restaurantes e um centrinho bem desprovido. Ah, e tinha uma farmácia. E foi lá que a coisa complicou. Minha esposa comprou uns remédios e tentou passar o meu cartão. Ela achou que sabia a senha, mas não sabia. E tentou a senha que não sabia umas 3 vezes e não funcionou. Devolveu-me o cartão dizendo que estava com problema e ficou assim.

Não podíamos ficar sem cartão, pois isso significaria ficar sem dinheiro para terminar as férias. Tenho o grave problema de não carregar dinheiro nem para o café do assaltante. Peguei o carro e fui até Guaratuba, outra cidade litorânea, um pouco mais bem equipada. Descobri no caixa automático que minha esposa tinha razão, o cartão não funcionava. Alguns quilômetros dirigindo no sol escaldante para descobrir que minha esposa tinha razão, o que é algo bem frequente e obvio. Voltei para a pousada em Itapoá e vi como única alternativa ligar para o gerente do banco que, por uma sorte danada, estava na minha lista de contatos do celular. Ele atendeu:

- Alô.
- João, tudo bem, é o Rodrigo.
- Tudo bem e você? Sumido!
- Pois é, na correria, você sabe. – lembrando, eu estava de férias – Escuta João, eu sei que está tarde e a agência fechou, mas vou precisar de uma ajuda urgente. Estou no meio do nada e aconteceu alguma coisa com meu cartão – àquela altura eu ainda não sabia das 3 tentativas frustradas da minha esposa de usar o cartão na farmácia. – Preciso sacar dinheiro e não consigo.

Não deu nem tempo de eu perceber o ponto de interrogação gigante em forma de silêncio do outro lado da linha. Rapidamente ele respondeu:

- Estranho, mas você tentou ir num caixa?
- Sim, estou em Itapoá, que não tem nada. Fui até Guaratuba e tentei, mas sequer entra na conta.
- Estranho. Desculpe perguntar, mas você está com saldo? Não estourou tua conta?
- Porra João, é por isso que estou te ligando. Teoricamente não estourei, pois saí com a conta em ordem e não me lembro de nenhum gasto exagerado, mas precisava que você visse o que houve.
- Rodrigo, vai ser bem difícil eu ver isso agora, mas me conte uma coisa, será que você não bloqueou o cartão sem querer?

Estava pronto para dar um xingo nele quando a imagem da minha esposa na farmácia, dizendo que o cartão não funcionava, pulou na minha cabeça. Não dei o xingo:

- Puta merda João, acho que você está certo. Deixa eu ver o que houve e depois te ligo.
- Claro, a hora que quiser.

Depois de esclarecer o caso com minha esposa, cheguei à conclusão que não teria outro jeito senão esperar o dia seguinte, ligar para o João novamente, e pedir para ele desbloquear o cartão quando estivesse na agência. Estava voltando para o quarto da pousada quando a ficha caiu. “Caraca, eu liguei para o João errado.” Eu tinha sentido algo estranho na conversa, mas minha indignação era maior e continuei. Era o João lá do primeiro parágrafo, do qual eu era cliente pela empresa que eu trabalhava. Olhei no celular e confirmei a gafe. Voltei para a rua, onde o sinal do celular era forte o suficiente para fazer ligações, e o chamei novamente:

- João seu louco, é o Rodrigo de novo.

A esta altura ele deve ter pensado, “caramba, eu é que sou o louco?” E respondeu:

- Fala Rodrigo, descobriu o que houve?
- Cara, por que você não me mandou pastar? Por que não falou que eu tinha ligado para o João errado? Para não te encher o saco naquela hora da noite?
- Mas você não estava enchendo o saco, estava com um problema e se eu pudesse ajudar que mal teria?
- O pior é que você tinha razão, o cartão deve estar bloqueado, pois erramos a senha 3 vezes seguidas numa farmácia.
- Acontece sempre, mas amanhã cedo já conseguimos resolver. Qual o teu banco e a tua agência, eu vou lá para você amanhã.
- João, vai tomar banho cara, eu resolvo por telefone. Relaxa. Cara, muitíssimo obrigado pela ajuda viu, e da próxima vez me manda pastar ok? Abraço.
- Valeu, se precisar de mais alguma coisa liga aí.

E foi assim que o João errado fez eu me sentir mal comigo mesmo por um bom tempo. Não por tê-lo incomodado, mas por tê-lo julgado errado por tanto tempo até aquele telefonema. Eu era cliente dele em uma conta vultuosa, tudo bem, mas acima de tudo eu era alguém que precisava de ajuda. E se ele tinha alguma chance de ajudar, ele não pensaria duas vezes.


Aqui na empresa onde eu trabalho, existe um processo de avaliação de desempenho dos colaboradores, que roda a cada semestre. Várias competências são avaliadas. Entre competências técnicas e comportamentais, existe uma chamada “Esforços voltados à satisfação do cliente” e outra chamada “Vontade de ajudar”. Sempre que alguém me pede para explicar melhor alguma dessas competências, eu pergunto, você tem tempo para eu contar uma história? E conto a história do João.