Meu sonho, quando era mais guri, era comprar um amplificador
de guitarras valvulado da Marshall. Eu fazia parte de uma banda de rock na
época, e achava que com um bom amplificador ninguém me seguraria. Nunca
consegui comprar o Marshall. Quando queria, não tinha dinheiro, quando tinha
dinheiro, as prioridades eram outras. Coisas normais da vida normal. Mas mesmo
sem nunca ter comprado o famoso amplificador, eu consegui uma chance de ouro de
aproveita-lo ao máximo.
Eu e meus amigos de banda juntamos uma grana e resolvemos
gravar nossas músicas em um estúdio local. Naturalmente queríamos mostrar para
o mundo o poder de nossas músicas de 3 minutos, 3 acordes e 3 temas (cerveja,
garotas e revolta). O estúdio era de um amigo, conterrâneo e meu veterano no
curso de engenharia elétrica. E adivinhe, ele tinha um Marshall valvulado.
Chegamos ao estúdio bem ensaiados e cheios de vontade,
montamos os equipamentos e começamos a gravação. Eu não via a hora de começar a
gravar a guitarra. Ficava olhando o Marshall, quietinho na sala de gravação,
esperando a vez dele. Ele me olhava de volta, meio que me desafiando, como se
eu não fosse capaz de encara-lo. Ele tinha razão.
Quando chegou a minha vez, respirei fundo, pluguei a
guitarra, que estava com cordas novas, bem afinadinhas, e dei o primeiro
acorde. Um desastre. Que som horrível, rachado, sem brilho, sem sustentação.
Realmente muito ruim. Antes que eu conseguisse pensar em me recuperar da
decepção, o dono do estúdio entrou na sala de gravação e disse “me deixa ver
tua guitarra.” Ele pegou minha Tonante, olhou para ela, olhou para mim com
muita dó e me lembrou de um conceito muito básico, bastante explorado no curso
no qual ele era meu veterano, se o sinal de entrada é ruim, basicamente ruído,
o amplificador não vai arrumar o sinal, vai apenas amplifica-lo. Em outras
palavras, se a guitarra é uma bosta (como é o caso da Tonante), um Marshall
valvulado não vai fazer milagre.
No fim não teve jeito de gravar com aquele negócio. Por
sorte o dono do estúdio é um baita guitarrista e emprestou uma das suas para
que a gravação não naufragasse. Registramos nossas músicas orgulhosos, ficamos
razoavelmente conhecidos, ao longo dos anos seguintes gravamos dois CDs e,
quando batemos a casa dos 30 anos, fomos abandonando aos poucos o ofício de
roqueiros revoltados contra o sistema. Encaixamo-nos no padrão esperado e
tocamos a vida.
Os anos passaram, os tempos de banda ficaram para trás e eu
me peguei esses dias pensando naquele Marshall desgraçado. Estava com um dilema
para resolver no trabalho e a lembrança daquele amplificador e da minha
guitarra podrona caiu como uma luva. A discussão era sobre por onde iniciar o
redesenho de um processo de negócio razoavelmente grande da empresa. Eu era
responsável por conduzir a iniciativa, o grupo era de umas 10 pessoas de
diversas áreas, e o calor da discussão aumentava na medida em que cada um
pensava somente no seu feudo, e ninguém estava preocupado em resolver o todo.
Com o mapa da situação atual do processo colado na parede,
dividido em 4 etapas diferentes, falei “pessoal, caiu a ficha, já sei por onde
começar”. Todos olharam e ficaram esperando eu lançar a ideia, provavelmente
para lincha-la, continuei “vamos começar pela guitarra. Temos que ter uma
Fender Stratocaster americana. Não adianta querer Marshalls valvulados enquanto
tivermos tocando uma Tonante”. Foi divertida a reação coletiva. Todos ficaram
me olhando. Um até puxou o telefone, e depois desistiu. Acho que pensou em
ligar para a segurança ou para o ambulatório (porque empresas não têm sanatório
– muitas deveriam). Curti a perplexidade geral por uns30 segundos e contei a
história do Marshall. Apelidamos a parte 1 do processo de Tonante, a 2 de cabo,
a 3 de Marshall e a última de fita de gravação. Ficou claro para todos que
tínhamos que, antes de mais nada, encontrar uma guitarra adequada para
conseguirmos fazer uma boa música empresarial. E assim foi feito.
Se você teve paciência de ler até aqui deve estar pensando,
“caramba, toda essa história para o cara chegar à conclusão de que o ideal é
sempre começar pelo começo?”. Verdade, é que nas situações mais diversas da
vida, como estúdios de gravação musical ou grandes corporações a gente tem essa
mania de complicar o obvio. Grande amplificador aquele Marshall.
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