sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

João


E tem o João, que era representante de uma empresa que representava materiais e equipamentos elétricos e de automação de outra empresa bem maior, e francesa. A francesa não tinha unidade aqui na região, e escolheram a empresa do João para representa-los. Para ser bem honesto, eu não gostava muito do João. Eu era cliente dele, mas achava ele muito bola murcha, se é que ainda existe essa expressão. Devagar mesmo, pouca energia. E um pouco reativo também, do tipo que não assume a responsa de muita coisa e faz aquela cara de “o que é que eu posso fazer?” No final das contas, eu estava errado. Era preconceito porque ele não era igual a mim. Onde já se viu não ser igual a mim?

Um dia eu estava de férias, como eventualmente a gente fica, em uma cidade do litoral chamada Itapoá. Não tinha nada lá, à exceção da pousada em que estávamos, casas, terrenos vazios, alguns restaurantes e um centrinho bem desprovido. Ah, e tinha uma farmácia. E foi lá que a coisa complicou. Minha esposa comprou uns remédios e tentou passar o meu cartão. Ela achou que sabia a senha, mas não sabia. E tentou a senha que não sabia umas 3 vezes e não funcionou. Devolveu-me o cartão dizendo que estava com problema e ficou assim.

Não podíamos ficar sem cartão, pois isso significaria ficar sem dinheiro para terminar as férias. Tenho o grave problema de não carregar dinheiro nem para o café do assaltante. Peguei o carro e fui até Guaratuba, outra cidade litorânea, um pouco mais bem equipada. Descobri no caixa automático que minha esposa tinha razão, o cartão não funcionava. Alguns quilômetros dirigindo no sol escaldante para descobrir que minha esposa tinha razão, o que é algo bem frequente e obvio. Voltei para a pousada em Itapoá e vi como única alternativa ligar para o gerente do banco que, por uma sorte danada, estava na minha lista de contatos do celular. Ele atendeu:

- Alô.
- João, tudo bem, é o Rodrigo.
- Tudo bem e você? Sumido!
- Pois é, na correria, você sabe. – lembrando, eu estava de férias – Escuta João, eu sei que está tarde e a agência fechou, mas vou precisar de uma ajuda urgente. Estou no meio do nada e aconteceu alguma coisa com meu cartão – àquela altura eu ainda não sabia das 3 tentativas frustradas da minha esposa de usar o cartão na farmácia. – Preciso sacar dinheiro e não consigo.

Não deu nem tempo de eu perceber o ponto de interrogação gigante em forma de silêncio do outro lado da linha. Rapidamente ele respondeu:

- Estranho, mas você tentou ir num caixa?
- Sim, estou em Itapoá, que não tem nada. Fui até Guaratuba e tentei, mas sequer entra na conta.
- Estranho. Desculpe perguntar, mas você está com saldo? Não estourou tua conta?
- Porra João, é por isso que estou te ligando. Teoricamente não estourei, pois saí com a conta em ordem e não me lembro de nenhum gasto exagerado, mas precisava que você visse o que houve.
- Rodrigo, vai ser bem difícil eu ver isso agora, mas me conte uma coisa, será que você não bloqueou o cartão sem querer?

Estava pronto para dar um xingo nele quando a imagem da minha esposa na farmácia, dizendo que o cartão não funcionava, pulou na minha cabeça. Não dei o xingo:

- Puta merda João, acho que você está certo. Deixa eu ver o que houve e depois te ligo.
- Claro, a hora que quiser.

Depois de esclarecer o caso com minha esposa, cheguei à conclusão que não teria outro jeito senão esperar o dia seguinte, ligar para o João novamente, e pedir para ele desbloquear o cartão quando estivesse na agência. Estava voltando para o quarto da pousada quando a ficha caiu. “Caraca, eu liguei para o João errado.” Eu tinha sentido algo estranho na conversa, mas minha indignação era maior e continuei. Era o João lá do primeiro parágrafo, do qual eu era cliente pela empresa que eu trabalhava. Olhei no celular e confirmei a gafe. Voltei para a rua, onde o sinal do celular era forte o suficiente para fazer ligações, e o chamei novamente:

- João seu louco, é o Rodrigo de novo.

A esta altura ele deve ter pensado, “caramba, eu é que sou o louco?” E respondeu:

- Fala Rodrigo, descobriu o que houve?
- Cara, por que você não me mandou pastar? Por que não falou que eu tinha ligado para o João errado? Para não te encher o saco naquela hora da noite?
- Mas você não estava enchendo o saco, estava com um problema e se eu pudesse ajudar que mal teria?
- O pior é que você tinha razão, o cartão deve estar bloqueado, pois erramos a senha 3 vezes seguidas numa farmácia.
- Acontece sempre, mas amanhã cedo já conseguimos resolver. Qual o teu banco e a tua agência, eu vou lá para você amanhã.
- João, vai tomar banho cara, eu resolvo por telefone. Relaxa. Cara, muitíssimo obrigado pela ajuda viu, e da próxima vez me manda pastar ok? Abraço.
- Valeu, se precisar de mais alguma coisa liga aí.

E foi assim que o João errado fez eu me sentir mal comigo mesmo por um bom tempo. Não por tê-lo incomodado, mas por tê-lo julgado errado por tanto tempo até aquele telefonema. Eu era cliente dele em uma conta vultuosa, tudo bem, mas acima de tudo eu era alguém que precisava de ajuda. E se ele tinha alguma chance de ajudar, ele não pensaria duas vezes.


Aqui na empresa onde eu trabalho, existe um processo de avaliação de desempenho dos colaboradores, que roda a cada semestre. Várias competências são avaliadas. Entre competências técnicas e comportamentais, existe uma chamada “Esforços voltados à satisfação do cliente” e outra chamada “Vontade de ajudar”. Sempre que alguém me pede para explicar melhor alguma dessas competências, eu pergunto, você tem tempo para eu contar uma história? E conto a história do João.

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